segunda-feira, 19 de abril de 2010

Dona Esmeralda





SERIA abuso do direito de opinar atribuir­se o celibato inconformado de Dona Es­meralda à sua feiura sem atenuantes e à sua voz de lixa. Tenho visto verdadeiras bruxas conseguirem homens às vêzes bonitos através de mandingas ou de rezas a Santo Antônio, ou mesmo sem fazer nada, assim como se re­cebem, sôbre um leito, as gôtas de chuva de uma goteira súbitamente aparecida.
Dona Esmeralda era, para. todos nós, a imagem da incansável, da solteirona protó­tipo, Inütilmente um cristão, com pena da sua feiura, cataria no seu corpo um pormenor para elogiar. Eu já encontrei, em viragos, mãos de um modelado e de uma espiritualidade que me convidava a decepá-las para substituirem as da bela pianista com dedos magros e calosos de trabalhadora de enxada. Vi olhos que pela sua beleza deslocada poderiam ser comparados a certos maravilhosos vitrais de velhos templos ruidos, aproveitados em igrejinhas modernosas de péssimo gôsto.
Dona Esmeralda tinha, contra o desagrado integral da sua figura, a agravante da voz. Qualquer das palavras mais doces e escorrega­dias do nosso idioma carioca, reconhecida-mente sacarífero, ganhava guturalidade, enca­roçamento, amargos e asperezas na sua bôca. Saudade é uma palavra suave e enternecedora, vocês não concordam? Pois na bôca de Dona Esmeralda saudade virava palavra nociva ao espírito e aos ouvidos como, por exemplo, ensancha ou enfiteuse.
E como nos dava trabalho, a nós, seus vi­zinhos siameses ligados pela mesma parede de casa geminada! De tantas em tantas noites seu histerismo, provindo da falta de amor, se manv festava aos berros, em pedidos de socorro, e sempre pela mesma suspêita de que um ladrão entram no seu quarto e se escondera debaixo da cama. Tínhamos de nos agachar no tapête e revistar debaixo da cama, que por sinal era muito ampla, mas baixa, e exigiria, para servir de esconderijo, homens de físico especialíssimo como os jóqueis e os pugilistas pesos-pluma.
Sim, sempre debaixo da cama, e nunca dentro de um armário ou da grande arca colo­nial, inseparável da família desde seu bisavô barão do café, reduzido à miséria pelo êxodo de braços negros da Abolição. Era uma cama de jacarandá larga e imponente como os tála­rnos daquêles bons tempos quando, das noites de amor de casais conscientes e perfeitos, o Brasil ganhava varões capazes de ministrar exemplos de caráter, de civismo e de humil­dade. Se apurassem bem, naqnela cama se prepararam os dias de algum estadista do Im­pério ou do comêço da República ainda un­gida das renitentes virtudes monárquicas. O doutor, vizinho do outro lado, dizia que aque­las gritarias periódicas eram simples miragens da abstinência, e que um marido, mesmo au­sente durante muitas noites, acabaria com os pedidos de socorro, com nossos sustos e nossas canseiras de desentocadores de fantamas.
E foi mesmo. Certa manhã, sem se saber como, apareceu na casa de Dona Esmeralda um homem absolutamente desconhecido de todo o bairro. Tinha um ar de pobre diabo e parecia teleguiado pelos olhos e pelos pensa­mentos da solteirona. Taciturno, respondendo por monossílabos, fazendo morrer tôdas as con­versas entaboladas para devassar-lhe a vida. E era um garôto, e tinha a beleza de um Apolo perto dos quarenta anos mal vividos e da feiura inapelável da SUA NOIVA.
É, meus amigos, Dona Esmeralda ama­nhecera noiva, e devia ter duas alianças de alcatéia porque na primeira manhã ambos as traziam no respectivo dedo. Estava gloriosa como uma bandeira nacional nova içada pela primeira vez num Sete de Setembro de sol perfeito e de temperatura amena. Que se pas­sara? Como explicar aquela conquista fulini­nante sem quaisquer indícios de namôro ou de conhecimento?
— É simples — explicou o doutor em cuja argúcia depositávamos cega confiança. — Final­mente Dona Esmeralda encontrou um ladrão debaixo da cama.


Por Henrique Pongetti

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